MEDIDA PROVISÓRIA Nº 961/20: antecipação de pagamento e cautelas (extras) necessárias

 

   
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Advogada e Consultora em Licitações e Contratos. Especialista em Direito Administrativo. Mestre em Gestão de Políticas Públicas. Autora da obra “Contratos Administrativos – Manual para Gestores e Fiscais – Incluindo Sistema de Registro de Preços, RDC e Lei das Estatais”, 3ª ed., 2020, Ed. Juruá.

 

A MPV 961 formalizou a autorização para pagamento antecipado de fornecedores em contratos celebrados durante a pandemia COVID-19. A medida, em verdade, está prevista formalmente no ordenamento jurídico desde 1983, no art. 38 do Decreto 93.872[1], que admite, “mediante as indispensáveis cautelas ou garantias, o pagamento de parcela contratual na vigência do respectivo contrato, convênio, acordo ou ajuste, segundo a forma de pagamento nele estabelecida, prevista no edital de licitação ou nos instrumentos formais de adjudicação direta.”

Há bastante tempo não encontra obstáculos na jurisprudência do TCU[2], tendo sido editada, em 2011, a Orientação Normativa nº 37 da AGU, também nesse sentido.[3] A recentíssima MPV 961, rigorosamente, incorporou as recomendações dos referidos órgãos.[4]

Especificamente para os contratos celebrados em razão da Lei 13.979/20, o Parecer Referencial nº 00254/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU, de 1º de abril de 2020, foi pelo seu cabimento, ressaltando sua utilidade para os fins de, neste cenário, “mitigar riscos, incrementar a competitividade, fomentar a ampliação da oferta dos insumos e aparelhos necessários, além de induzir redução dos preços.” A MPV, ao autorizá-lo expressamente, trouxe mais segurança aos gestores, especialmente nesse período de singulares incertezas e dificuldades.

Embora tenha sido editada em um momento em que a preocupação principal é a captação de fornecedores para as contratações voltadas à contenção da pandemia, a norma não se restringe a elas. Ou seja, durante o período de sua vigência, não apenas os contratos decorrentes da Lei 13.979/20, mas também contratos celebrados sob a égide da Lei 8.666/93 poderão conter previsão de pagamento antecipado, desde que atendam aos mesmos requisitos.[5]

Contudo, se a medida levanta questões e impõe severos cuidados quando utilizada em situações excepcionalíssimas, como a vivenciada atualmente, é certo que maior atenção deverá ser dada às justificativas de sua utilização em contratos regulares, recomendando-se seguir à risca a orientação do TCU quanto à necessária existência de estudo preliminar com esse enfoque.

De acordo com a MPV 961, é condição sine qua non para a legalidade do pagamento antecipado a existência de justificativa formal, elaborada na etapa de planejamento da contratação, que demonstre ser condição indispensável a) para a obtenção do bem ou assegurar a prestação do serviço ou b) para propiciar significativa economia de recursos (art. 1º, inciso II). Não há, como se vê, necessidade de cumulação de ambas as condições, sendo suficiente o atendimento de uma delas. É importante observar que, não havendo a obrigatoriedade de elaborar estudo preliminar no caso de contratação de bens e serviços comuns, conforme o art. 4 C da Lei 13.979/20, os motivos da antecipação do pagamento deverão integrar a justificativa simplificada que instruirá o processo.[6]

A MPV ainda indica cautelas suplementares que visam reduzir o risco de inadimplemento. O §2º do art. 1º traz um rol exemplificativo, cabendo ao gestor avaliar a conveniência e a oportunidade de sua utilização, conforme cada caso concreto. Outras, ainda, nos parecem passíveis de cogitação, algumas diretamente conectadas com as especificidades do período pandêmico:

a) É fundamental ter em mente que o pagamento antecipado não se destina a socorrer empresas que estão sem fluxo de caixa, mas a promover o necessário estímulo, especialmente às empresas idôneas, à contratação com o Poder Público nesse período de incertezas. Por isso, embora o art. 4º E da Lei 13.979/20 possibilite a flexibilização das condições de habilitação, deve ser avaliada, caso a caso, a conveniência de exigir índice econômico-financeiro capital social/patrimônio líquido compatível, no mínimo, com a parcela de execução equivalente aos valores antecipados;

 

b) Em tempos de crise, muitas empresas estão buscando a sobrevivência atuando em ramos diversos do usual. Em uma contratação pública, isso não significará, necessariamente, uma irregularidade, nem atestará sua inidoneidade. Aliás, como ocorre em tempos de normalidade, o ramo do objeto, sabidamente, não define a possibilidade ou impossibilidade de participação na licitação ou contratação direta. Contudo, o momento requer cuidado, sendo recomendável, se possível, a contratação de empresa que efetivamente possua atuação no ramo do objeto, justificando no processo eventual impossibilidade;

 

c) A inclusão de cláusula impondo o dever do contratado de, durante o transcurso do prazo de entrega, comunicar imediatamente a eventual possibilidade de atraso no fornecimento do produto, equipamento ou insumo, juntamente com a indicação dos motivos, é medida indispensável. A MPV prevê para a Administração o dever de exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto ( 1º, §1º, inc. II) razão pela qual, uma vez informado pelo contratado o risco de atraso, a Administração poderá centrar seus esforços a) na pré-identificação das providências cabíveis em caso de inadimplemento total, o que inclui o próprio atendimento do interesse público insatisfeito, e b) no adiantamento dos procedimentos internos necessários à referida cobrança;

 

d) Fixar, de forma correta, um prazo máximo de tolerância para o atraso na entrega do produto, equipamento ou insumo é fundamental, pois indica, claramente, o momento em que o contratado sairá da simples mora para o inadimplemento total, possibilitando a imediata cobrança dos valores pagos à contratada e a tomada das demais providências cabíveis. A medida não é novidade nos editais e contratos em geral, mas se mostra especialmente importante nesses casos de pagamento antecipado, já que o gradual escoar do prazo permitirá à Administração preparar-se para a tomada de providências cabíveis;

 

e) Designar formalmente um agente responsável pelo acompanhamento da execução do contrato, qualquer que seja seu objeto, é um dever da Administração, conforme estabelece o art. 67 da Lei 8.666/93. A prática, que não é suficientemente difundida entre as organizações públicas, especialmente em nível estadual e municipal, é absolutamente necessária, e por razões óbvias, nos casos em que o pagamento precede a execução;

 

f) Exercitar a transparência ativa, divulgando todas as informações em sítios específicos conforme determina a Lei 13.979/20 em seu art. 4º, §2º, abrindo dados, viabilizando o acesso a processos eletrônicos e mantendo um diálogo franco com a imprensa e com a sociedade.

 

Essa lista, certamente, não esgota as possibilidades. Cabe aos gestores e suas equipes, aos órgãos de assessoramento jurídico e, até mesmo, controladorias internas, permanecerem atentos a outras estratégias que possam, dentro dos limites da juridicidade, não apenas mitigar o risco de prejuízo ao interesse público, mas também blindar o agente quanto a eventual caracterização do erro grosseiro e futura responsabilização.[7] Uma atuação diligente dos agentes públicos por meio de decisões voltadas ao gerenciamento dos riscos, de justificativas bem fundamentadas, de pareceres jurídicos anexados ao processo, de cuidados especiais na seleção do fornecedor, sempre considerando as necessidades e peculiaridades do caso concreto é o que se espera em tais situações e o que definirá, possivelmente, o destino da contratação, assim como de todos os envolvidos. O pagamento antecipado é um recurso necessário, a MPV 961 é muito bem-vinda, mas permanece na cota dos agentes públicos utilizá-lo com bom senso e cautela.

 

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Notas

[1] Dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, atualiza e consolida a legislação pertinente e dá outras providências.

[2] Segundo os Acórdãos nº 4143/16 e nº 2856/19 – TCU/1ª Câmara, os seguintes requisitos precisam ser atendidos:

  1. existência, no processo licitatório, de estudo fundamentado comprovando a real necessidade e economicidade da medida;
  2. previsão no instrumento convocatório;
  3. condicionado à prestação de garantias específicas e suficientes, que resguardem a Administração dos riscos inerentes à operação.

[3] ON 37, de 13 de dezembro de 2011:  “A antecipação de pagamento somente deve ser admitida em situações excepcionais, devidamente justificada pela administração, demonstrando-se a existência de interesse público, observados os seguintes critérios: 1) represente condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, ou propicie sensível economia de recursos; 2) existência de previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta; e 3) adoção de indispensáveis garantias, como as do art. 56 da lei nº 8.666/93, ou cautelas, como por exemplo a previsão de devolução do valor antecipado caso não executado o objeto, a comprovação de execução de parte ou etapa do objeto e a emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras.”

[4] Em irretocável artigo intitulado “A mística da impossibilidade de pagamento antecipado pela Administração Pública”, Anderson Pedra, Rafael Oliveira e Ronny Charles elencam, ainda, outras cautelas a serem tomadas para a efetivação do pagamento antecipado.  

[5] A afirmativa se estende a todas as demais normas e medidas dela constantes.

[6] Mais sobre o planejamento da contratação com base na Lei 13.979/20 no artigo “A dispensa de licitação para contratações no enfrentamento ao coronavírus”, escrito em co-autoria com Rafael Sérgio de Oliveira e Ronny Charles, publicado no Portal L & C, disponível em http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo_detalhe.html.

[7]No Acórdão nº 185/2019, o Plenário do TCU entendeu que “Para fins de responsabilização perante o TCU, pode ser tipificada como erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) a realização de pagamento antecipado sem justificativa do interesse público na sua adoção e sem as devidas garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto pactuado”. Na situação concreta, não havia nos autos estudo comprovando a real necessidade e a economicidade para a antecipação do pagamento, nem garantia específica e no montante do valor adiantado.

 

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Referência bibliográfica deste texto: 

PÉRCIO, Gabriela. MPV 961: antecipação de pagamento e cautelas (extras) necessárias. 2020. Disponível em <http://www.olicitante.com.br/mp-961-pagamento-antecipado-cautelas/> .

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