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Revogação, Anulação, Cancelamento (?) de licitação e a necessidade de abertura ao contraditório e ampla defesa

por Dawison Barcelos

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Três institutos representam as formas em que os procedimentos licitatórios podem ser finalizados: homologação do resultado; revogação; e anulação. Cada um deles possui pressupostos próprios que ensejam diferentes consequências quanto ao atendimento da necessidade da administração pública.

A homologação encerra os procedimentos licitatórios bem-sucedidos em selecionar futuro contratado para executar o objeto em disputa, cuja proposta foi declarada apta e efetiva, de acordo com as exigências e as especificações contidas no instrumento convocatório.

Os efeitos da homologação, especialmente quando cotejados com os da adjudicação, sempre foram objeto de discussão na doutrina.

Em nosso juízo, a adjudicação é a vinculação do objeto ao licitante habilitado. Em outras palavras, é a estabilização definitiva da ordem classificatória e a atribuição, ao licitante mais bem classificado, do direito de impor o respeito à referida ordem, na hipótese de a empresa estatal celebrar contrato. Esse também aparenta ser o entendimento do Tribunal de Contas da União que, no julgamento que culminou no Acórdão no 289/2018-Plenário, que assim registrou:

o ato de adjudicar, diversamente da homologação, não gera o reconhecimento da  regularidade do procedimento licitatório. Em realidade, ao adjudicar o objeto da  licitação, a autoridade competente apenas estará considerando aquele licitante apto a  ser contratado, não gerando sequer direito subjetivo à assinatura do contrato (Acórdão nº 289/2018-Plenário)

O ato de homologação do resultado, por sua vez, firma o juízo de que o certame foi validamente realizado e o objeto licitado ainda se mantém conveniente à Administração.

Neste ponto, é importante indicar a existência de diferença significativa entre o regime tradicional de licitação (lei nº 8.666/93) e o regime das empresas públicas e sociedades de economia mista (lei nº 13.303/2016). A lei das estatais revelou mudança de paradigma quanto ao tratamento legal e jurisprudencial da matéria ao dispor, em seu art. 60, que “a homologação do resultado implica a constituição de direito relativo à celebração do contrato em favor do licitante vencedor1.

Tradicionalmente, no âmbito da lei 8.666/1993, não se reconhece o direito à contratação como efeito do ato homologatório. Segundo o TCU, somente após a regular convocação para a assinatura do termo contratual é que passa a existir direito subjetivo à contratação para qualquer dos licitantes.

Quanto ao desfazimento do certame por revogação ou anulação, é preciso salientar que a hipótese não se limita à apreciação da autoridade após a adjudicação do objeto. O procedimento licitatório pode ser revogado em qualquer uma de suas etapas ou anulado até mesmo após o regular encerramento de certame homologado.

De todo modo, quanto forem constatadas ilegalidades que não permitam a convalidação do ato ou do procedimento viciado, a anulação se impõe. Portanto, a anulação, necessariamente, decorre de uma ilegalidade, isto é, de uma ofensa ao ordenamento jurídico.

Por outro lado, ainda que se reconheça a legalidade de todos os atos já praticados, na hipótese de existirem “razões de interesse público decorrentes de fato superveniente que constitua óbice manifesto e incontornável”, haverá espaço à revogação.

Cabe destacar que não basta o simples juízo de inoportunidade ou inconveniência. O espectro dessa análise não é livre, devendo fundamentar-se em circunstâncias inexistentes ou desconhecidas no momento inicial em que se considerou conveniente a publicação do certame licitatório. Esse entendimento é extraído da redação do art. 49 da lei nº 8.666/1993 e do art. 62 da lei nº 13.303/2016:

Lei nº 8.666/93. Art. 49.  A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.

Lei nº 13.303/2016. Art. 62. Além das hipóteses previstas no § 3º do art. 57 desta Lei e no inciso II do § 2º do art. 75 desta Lei, quem dispuser de competência para homologação do resultado poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrentes de fato superveniente que constitua óbice manifesto e incontornável, ou anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, salvo quando for viável a convalidação do ato ou do procedimento viciado.

Há outra importante questão sobre o assunto em que, dessa vez, os regimes licitatórios (tradicional e das estatais) fornecem soluções distintas: a existência de direito ao contraditório e à ampla defesa diante da intenção da Administração em revogar o procedimento licitatório.

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DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA

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Às licitações realizadas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista, o legislador optou por fornecer indicação expressa do momento a partir do qual as estatais deverão oportunizar o contraditório e a ampla defesa aos interessados.

Reza o §3º do art. 62 da Lei nº 13.303/2016 que, após o início da fase de apresentação de lances ou propostas, “a revogação ou a anulação da licitação somente será efetivada depois de se conceder aos licitantes que manifestem interesse em contestar o respectivo ato prazo apto a lhes assegurar o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa”.

No âmbito da lei nº 8.666/93, a norma se limitou a indicar, em seu art. 49, §3º, que “caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa”.

De aparente simplicidade, a obrigatoriedade de conceder espaço aos licitantes interessados em exercer o direito ao contraditório e à ampla defesa, previamente à decisão de revogação e anulação, tradicionalmente motivou debate na doutrina e na jurisprudência.

O Superior Tribunal de Justiça possui diversos julgados que ressalvam a aplicação do art. 49, §3º, nas hipóteses de revogação de licitação antes de sua homologação. Esse entendimento aponta que o contraditório e a ampla defesa somente seriam exigíveis quando o procedimento licitatório tiver sido concluído. De acordo com o STJ:

“ADMINISTRATIVO.  LICITAÇÃO.  INTERPRETAÇÃO DO ART. 49, § 3º, DA LEI 8.666/93. (…) 5. Só há aplicabilidade do § 3º, do art. 49, da Lei 8.666/93, quando o procedimento licitatório, por ter sido concluído, gerou direitos subjetivos ao licitante vencedor (adjudicação e contrato) ou em casos de revogação ou de anulação onde o licitante seja apontado, de modo direto ou indireto, como tendo dado causa ao proceder o desfazimento do certame” (MS 7.017/DF, Rel. Min. José Delgado, DJ de 2/4/2001)

“Nos processos licitatórios de qualquer espécie, antes da homologação, têm os concorrentes expectativa de direito ao resultado da escolha a cargo da Administração, não sendo pertinente se falar em direito adquirido. Verifica-se, pelo documentos acostados aos autos, que o procedimento licitatório ainda estava em curso e, ao titular de mera expectativa, não se abre o contraditório”. (…) a revogação da licitação, quando antecedente da homologação e adjudicação, é perfeitamente pertinente e não enseja contraditório. Só há contraditório antecedendo a revogação quando há direito adquirido das empresas concorrentes, o que só ocorre após a homologação e adjudicação do serviço licitado” (RMS 23.402/PR, 2a Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 2.4.2008).

O Tribunal de Contas da União, após alguns julgados que se alinhavam com o entendimento do STJ (p. ex., acórdão 111/07 e 1904/08-P), construiu sua jurisprudência de forma menos restritiva, passando a considerar o contraditório e a ampla defesa como requisitos à revogação do procedimento licitatório:

25. Do bloco normativo supra pode-se compreender que a revogação de certame, apesar de ser uma prerrogativa, não pode ocorrer sem qualquer tipo de limitação, razão pela qual o ordenamento jurídico estabelece, em substância, os seguintes requisitos para tanto: a) fato  superveniente que tenha transfigurado o procedimento em inconveniente ou inoportuno; b)  motivação; e c) contraditório e ampla defesa prévios.

26. Noutras palavras, constatada a ocorrência de fato superveniente capaz de suportar o desfazimento do processo licitatório por inconveniência e/ou inoportunidade, a Administração deve comunicar aos licitantes a intenção de revogação, oferecendo-lhes direito ao  contraditório e à ampla defesa prévios, em prazo razoável, para que defendam a licitação  deflagrada e/ou demonstrem que não cabe o pretendido desfazimento, tudo antes de ocorrer a  decisão da Administração de forma motivada. (acórdão 455/2017-Plenário e, no mesmo sentido: acórdãos 1.725/18-Plenário e 4.467/2019 – 2ª Câmara)

Entretanto, no julgamento que originou o acórdão 2.656/19-P, proferido em novembro de 2019, o plenário do Tribunal de Contas da União adotou raciocínio diverso, igualado ao tradicional entendimento do STJ. A ementa da decisão apresenta, de forma clara, o caminho trilhado:

Somente é exigível a observância das disposições do art. 49, § 3º, da Lei 8.666/1993 quando o procedimento licitatório, por ter sido concluído com a adjudicação do objeto, gera direitos subjetivos ao licitante vencedor ou em casos de revogação ou de anulação em que o licitante seja apontado, de modo direto ou indireto, como o causador do desfazimento do certame.

Na visão apresentada pela relatora – e referendada pelo plenário – o §3º do art. 49 não se aplica indistintamente a todas as hipóteses em que a administração pretende revogar o certame. Haveria necessidade de dar oportunidade de contraditório e ampla defesa antes da revogação de licitação apenas quando já se adjudicou o seu objeto; ou quando se imputar a causa do desfazimento ao próprio licitante.

Cumpre ressaltar que, mesmo nas situações em que se considera dispensável oportunizar o contraditório e a ampla defesa aos licitantes, a obrigação da administração de, efetivamente, motivar o ato revogatório não é afastada. Ao decidir, em obediência aos princípios da transparência e da motivação, o gestor sempre deverá evidenciar as razões supervenientes que fundamentaram a conclusão pela revogação do certame e também os motivos de não prosseguir com a licitação.

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“CANCELAMENTO DA LICITAÇÃO”

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Por fim, tendo em vista que o encerramento dos procedimentos licitatórios deve se adequar às fórmulas da homologação, revogação ou anulação, na hipótese de a Administração pretender o desfazimento do certame, a nosso juízo, necessariamente, deverá valer-se da revogação, por ausência de conveniência decorrente de fatos supervenientes; ou da anulação, por motivo relacionado à legalidade.

Não há se falar, assim, em via autônoma do “cancelamento da licitação” como forma de extinção do certame sem o atendimento dos requisitos da anulação ou da revogação.

Conforme bem orienta Marçal Justen Filho, “não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, um ato discricionário e imotivado de extinção  da licitação por ‘cancelamento’. Se praticado o ‘cancelamento’, deverá verificar-se o motivo  invocado. Se não existir motivo algum, configura-se ato administrativo arbitrário e nulo”.

1. BARCELOS, Dawison; TORRES, Ronny Charles L. de. Licitações e Contratos nas Empresas Estatais: JusPODIVM, 2018. p. 399 e s.

2. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 954..

por Dawison Barcelos

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