A APLICAÇÃO ANALÓGICA DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS PARA AS LICITAÇÕES REGIDAS PELA LEI DAS ESTATAIS
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A APLICAÇÃO ANALÓGICA DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS PARA AS LICITAÇÕES REGIDAS PELA LEI DAS ESTATAIS
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Introdução
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A Lei n.º 13.303/16 instituiu o estatuto jurídico das empresas estatais em cumprimento ao que determina o art. 173, §1º, da Constituição Federal, dispondo sobre a sua função social e as formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; a sua sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas; licitação e contratação; a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal; os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores e, apesar de ter já não ser uma legislação inédita e recente, novos desafios sempre surgem para aqueles que atuam com empresas públicas e sociedades de economia mista, especialmente matérias atinentes às licitações e aos contratos.
Em 2021, com o advento da Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC passou a ser mais um tema a ser debatido e, eventualmente, harmonizado com as licitações e contratos regidos pela Lei das Estatais.
Nesse cenário, o presente artigo buscará analisar se a utilização analógica da NLLC aos procedimentos licitatórios disciplinados pela Lei nº 13.303/2016 se afigura como melhor solução hermenêutica.
1. Do dever de autorregulamentação das empresas estatais
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A Lei nº 13.303/16, além de dispor de um novo regime licitatório e contratual para as empresas estatais, foi bastante discricionária (e compulsória), permitindo que cada empresa estatal crie e molde seu próprio regulamento de licitações (art. 40), levando em consideração suas peculiaridades e especificidades de mercado, de maneira que cada normativo interno possa responder satisfatória e igualitariamente às empresas que prestam serviços públicos e às que desenvolvem atividade econômica.
Sobre o Regulamento Interno, a Lei impôs um prazo de 24 meses após sua publicação[1] para que as empresas públicas e as sociedades de economia mista elaborassem seu regulamento, devendo ser superada a definição do normativo interno como instrumento meramente burocrático, sendo necessário ampliar o olhar e enxergar o regulamento interno como um dos instrumentos privilegiados para que a estatais concretizem as funções constitucionais e cumpram a sua função social, “criando critérios técnicos, econômico-sociais e jurídicos que materializem e torne rotina, em sua prática diária, os mandamentos mais amplos da Ordem Econômica[2].
Nesse sentido, para Justen Neto a “edição da Lei 13.303 é uma excelente oportunidade para as empresas estatais adaptarem as condutas e a gestão conforme as especificidades de sua atuação”[3] e, com efeito, já transcorrido o prazo para que as empresas estatais elaborassem seus regulamentos internos, é chegada a hora de revisá-los ou atualizá-los, usando o prazo já passado e as licitações/contratações realizadas como balões de ensaio para verificar o que pode ser melhorado, acrescentando disposições faltantes e excluindo previsões desnecessárias ou incompatíveis.
A atualização deve ser feita com zelo e dedicação técnica, inclusive porque, em 2020, o Tribunal de Contas da União realizou fiscalização de orientação para verificar a adequação das empresas públicas e sociedades de economia mista às disposições da Lei nº 13.303, tendo constatado, como achado recorrente nas estatais fiscalizadas, a inexistência de previsão, nos regulamentos internos avaliados, de dispositivos sobre etapa de lances exclusivamente eletrônica, utilização de cláusula de matriz de riscos na realização das licitações, observância da política de transações com partes relacionadas e procedimentos auxiliares das licitações.[4]
2. Não aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993
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Mesmo com mais de cinco anos, a aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993 ainda é um dos maiores desafios à plena aplicação da Lei nº 13.303/2016, que, ao instituir o estatuto jurídico das empresas estatais em cumprimento ao que determina o art. 173, §1º, da Constituição Federal, dispôs sobre um novo regime de licitação e contratação, além de determinar que cada entidade elabore seu próprio regulamento de licitações e contratos, tendo como base as condições gerais da própria Lei das Estatais.
Uma questão interessante quando da elaboração do regulamento interno e da própria interpretação e aplicação da Lei nº 13.303/2016 diz respeito à aplicação subsidiária da Lei n.º 8.666/93 às licitações e contratos das empresas estatais.
A Lei das Estatais ainda que não seja mais uma legislação recente, possui um grande impacto econômico e gerencial, sendo muito natural que no começo de sua aplicação houvesse dificuldades práticas, demandando integração de fontes.
A necessidade de integração das fontes, e até do diálogo entre elas, não se confunde com a aplicação da Lei n.º 8.666/93 para suprir as eventuais lacunas da Lei n.º 13.303/16, tendo em vista a incompatibilidade entre os regimes previstos pelas Leis.
Assim, em caso de qualquer omissão ou dubiedade nas disposições da Lei das Estatais, não se deve buscar socorro nas disposições da Lei n.º 8.666/93, pois são, conforme já dito, regimes jurídicos distintos.
Nesse sentindo, no segundo semestre de 2020, foi aprovado o Enunciado 17, na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho Nacional de Justiça, aduzindo que “os contratos celebrados pelas empresas estatais, regidos pela Lei nº 13.303/16, não possuem aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93. Em casos de lacuna contratual, aplicam-se as disposições daquela Lei e as regras e os princípios de direito privado”, trazendo mais robustez à vedação da aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993, desde a publicação da Lei nº 13.303/2016, também combatida por parte da doutrina e jurisprudência.
Em ligeira complementação ao Enunciado 17, entendemos que não apenas aos contratos celebrados pelas empresas estatais, mas a todo o procedimento licitatório das empresas públicas e sociedades de economia mista não há aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93, muito embora se registre que a expressa menção ao regime de direito privado esteja no art. 68 da Lei nº 13.303/2016, que disciplina os contratos.
A ausência de aplicação subsidiária não afasta, contudo, a aplicação dos conceitos jurídicos desenvolvidos em razão da Lei n.º 8.666/93 ou de outras legislações licitatórias, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência, de maneira que, muito embora não haja aplicação subsidiária, não há incompatibilidade valer-se, por exemplo, dos entendimentos sustentados pelos Acórdãos do Tribunal de Contas da União que tratam sobre institutos da licitação, considerando que, em muitos momentos, os elementos se assemelham, mesmo com regimes distintos. Há, inclusive, precedentes nesse sentido[5].
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3. Não aplicação subsidiária da Lei nº 14.133/2021
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Além da Lei nº 8.666/1993 não ser aplicável subsidiariamente à Lei nº 13.303/2016, a Nova Lei de Licitações e Contratos também não é. E a conclusão, para esse ponto, é mais confortável e direta do que a do tópico anterior.
A Lei nº 14.13/2021 dispõe expressamente em seu art. 1º, §1º que não são abrangidas pela Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, pois estas entidades são regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016.
Aqui a exclusão das estatais é literal e taxativa: a NLLC não se aplica às contratações públicas das empresas estatais, o que combate qualquer eventual entendimento divergente e reforça ainda sobre a não aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93 à Lei das Estatais.
Não é despiciendo, no entanto, acrescentar que, não obstante à não aplicação da NLLC às empresas estatais, há repercussões indiretas da Lei nº 14.133/2021 nos procedimentos licitatórios das empresas públicas e sociedades de economia mista, p. ex., critérios de desempate, crimes licitatórios, pregão eletrônico.
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4. A independência da Lei nº 13.303/2016 das demais leis gerais de licitação
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Com o afastamento da aplicação da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 14.133/2021, é incontroverso que há independência entre a Lei das Estatais e demais leis gerais de licitação, especialmente considerando a especialidade daquela, que instituiu não apenas um novo sistema licitatório, mas inaugurou o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista.
Essa autonomia já foi, inclusive, registrada pelo Tribunal de Contas da União. No Acórdão 1621/2021, o voto do Relator foi contundente no registro:
Cabe ressaltar que a jurisprudência citada pela unidade técnica, no caso a Súmula 263 e o Acórdão 2781/2017-TCU-Plenário, se referem a licitações fundeadas na Lei 8.666/1993, e não na Lei das Estatais. Não obstante o exposto, conforme discorrerei a seguir, entendo que tais entendimentos podem ser aplicáveis às contratações lastreadas na Lei 13.303/2016. […] As empresas estatais não estão vinculadas às disposições de outras leis voltadas para a Administração Pública, como é o caso da Lei 8.666/1993 e da Lei 12.462/2011.
Nessa senda, o TCU já reconhece a independência das legislações, ainda que admita extensão do entendimento consolidado da Corte para todos os procedimentos licitatório, incluindo do das estatais, em razão da submissão de toda administração pública do dever constitucional de licitar.
Em outra oportunidade, o Relator chamou a atenção para a emancipação das estatais às demais leis gerais de licitação, bem como não ser adequado referenciar, como fundamento, julgados do TCU relacionados com contratações realizadas no bojo das Leis 10.520/2002, 8.666/1993 e 12.462/2011 (RDC):
O certame em tela é amparado na Lei 13.303/2016, ao passo que a unidade técnica elaborou o seu exame escorada precipuamente em disposições da Lei 8.666/1993 e do Decreto 7.892/2013, que não são aplicáveis ao caso, bem como mencionou inúmeros julgados do TCU relacionados com contratações realizadas no bojo das Leis 10.520/2002, 8.666/1993 e 12.462/2011 (RDC). Nenhuma das decisões mencionadas pela unidade técnica tratou do emprego de atas de registro de preços em certames regidos pela Lei das Estatais. […]
Assim, com as vênias de estilo, a proposta da SeinfraUrbana no sentido de “considerar que o uso do sistema de registro de preços para o objeto do Pregão Eletrônico 20000127/2020-CS encontra amparo no art. 6º, inciso II, da Lei 8.666/93 e no art. 3º do Decreto 7.892/2013 e na jurisprudência do Tribunal” é de plano inconsistente com a legislação que rege a licitação em apreciação, que foi embasada na Lei 13.303/2016.
[…] a análise das unidades técnicas desta Corte de Contas deve embasar-se no regime licitatório que rege a contratação em exame, haja vista convivermos com a inusitada situação de haver simultaneamente quatro distintas leis licitatórias que se encontram atualmente em vigor da administração direta, autárquica e fundacional (Leis 8.666/1993, 10.520/2020, 12.462/2011 e 14.133/2021) , além da Lei 13.303/2016, que é aplicável exclusivamente às empresas públicas e sociedades de economia mista. […]
Assim, é necessário certo cuidado para que os julgados produzidos pelo TCU sejam mencionados dentro do contexto e da legislação nos quais foram prolatados, evitando-se extrapolar as suas conclusões para licitações amparadas em outras normas de regência.
(Acórdão 1767/2021 – TCU Plenário, sem destaques no original)
Dessa maneira, complementando o que já foi esposado no item 2 acima, apesar de a ausência de aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93 não afastar a aplicação dos conceitos jurídicos desenvolvidos em razão de interpretações de outras legislações licitatórias, bem como não haver incompatibilidade em usar como fundamento os entendimentos sustentados pelos Acórdãos do Tribunal de Contas da União, há que se considerar, de fato, se o entendimento pode ser extensível às empresas estatais.
Essa ponderação já vem sendo feito pelo próprio TCU quando revela que não há de ser absoluta a utilização de sua jurisprudência escorada em outras leis gerais de licitação para interpretação as licitações das empresas públicas e sociedades de economia mista regidas pela Lei nº 13.303/2016.
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5. Dos efeitos da independência da Lei nº 13.303/2016 e da não aplicação subsidiária das Leis nº 8.666/1993 e nº 14.133/2021 às estatais
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O abrupto rompimento com a Lei nº 8.666/93, e consequentemente com os demais sistemas licitatórios existentes, trouxe um efeito secundário importante, porém pouco discutido: a quebra de aplicação das normas infralegais não extensíveis às empresas estatais, como portarias, instruções normativas, além das legislações específicas que tratam da temática contratações públicas.
O ano de 2020 teve muitas inovações normativas, talvez incentivado pela necessidade de combater a pandemia da Covid-19 e, muitas das novidades trazidas pelas normas editadas naquele ano não eram de aplicação imediata às empresas públicas e às sociedades de economia mista, o que despertou a necessidade de as estatais ampliarem a visão acerca do seu dever regulamentação, para não ficarem pra trás em questões de contratações públicas, mesmo tendo o poder-dever de regulamentação.
Com o advento da Lei nº 13.303/16, tudo que envolve as licitações e contratos das estatais é regulamentado pela referida Lei e pelo regulamento interno de licitações e contratos de cada entidade, a ser parametrizado a partir da necessidade e peculiaridade de cada estatal.
Surgiu, assim, o desafio de criar normas e institutos para regulamentar o que a Lei das Estatais não detalha ou não prevê. E é nesse ponto que surge a necessidade latente de as empresas públicas e sociedades de economia mista observarem o ordenamento jurídico como um todo e buscar absorver o que possa ser útil e eficiente, mediante análise crítica dos institutos já postos.
A título ilustrativo, a pesquisa/cotação de preços tem previsão no art. 31, §3º da Lei nº 13.303/16, que determina que a estimativa de custo global poderá ser apurada por meio da utilização de dados contidos em tabela de referência formalmente aprovada por órgãos ou entidades da administração pública federal, em publicações técnicas especializadas, em banco de dados e sistema específico instituído para o setor ou em pesquisa de mercado.
Inegável que a redação da Lei das Estatais teve parâmetros que foram inspirados ainda na Instrução Normativa SLTI nº 05/2014, revogada em 2020, pela Instrução Normativa 73, que alterou substancialmente a pesquisa de preços.
Apesar das inovações trazidas, a Instrução Normativa 73/2020 é expressa ao dispor que se aplica ao procedimento administrativo para a realização de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, excluindo as empresas estatais do seu alcance.
Ainda sobre o tema, com a publicação da NLLC, nova instrução normativa sobre pesquisa de preços sobreveio, a IN 65/2021, o que tornou o sistema das empresas estatais ainda mais obsoleto.
Defasada estando as previsões da pesquisa de preços da Lei nº 13.303/16 e considerando que o art. 31, §3º tem redação ampla e não detalha padrões aceitáveis de prazos e parâmetros para aferição do preço referencial, as empresas estatais tem, via de regra, duas opções: (i) incorporar integralmente as disposições das Instruções Normativas existentes aos seus normativos ou (ii) não adotar a normatização sobre o tema e elaborar norma própria sobre o procedimento de orçamentação.
Destarte, com o distanciamento do regime jurídico das estatais do regime jurídico da administração direta, a não aplicação subsidiária do sistema licitatório tem como efeito colateral a não utilização automática dos mecanismos de regulamentação infralegais que aperfeiçoam do procedimento licitatório não extensível às estatais.
Nessa toada, as normas acessórias devem sempre ser “recepcionadas” pelo regulamento interno da empresa pública e da sociedade de economia mista, que adotará os padrões já existentes ou realizará normatização própria, nos termos do art. 40 da Lei nº 13.303/2016, soluções que recomendamos que seja em ato interno ou no próprio regulamento interno de licitações e contratos, nos termos do já citado art. 40, bem como que a opção seja devidamente aprovada pela Diretoria Executiva e Conselho de Administração, com posterior publicação em nos portais respectivos, em razão da transparência e publicidade.
Esse efeito secundário decorrente da especialidade do regime jurídico das empresas estatais instituído pela Lei nº 13.303/2016 reforça a responsabilidade que as entidades devem ter em sua regulamentação interna, especialmente para tenham a eficiência desejada pela Lei das Estatais em seus procedimentos de contratações públicas, além de afastar a incidência de aplicação reflexa das demais leis gerais de licitações e contratos, pois, como demonstrado nas linhas acima, há independência entre as legislações e não aplicação subsidiária dos demais sistemas licitatórios às estatais.
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6. A aplicação analógica da NLLC à Lei nº 13.303/2016
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A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de 1942, já traz a possibilidade de, em sendo omissa a lei, se decidirá com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito[6], não se desconhecendo, portanto, o valor jurídico do instituto que se tem, como tarefa fundamental colaborar com a interpretar os textos de “de maneira autêntica, em confrontá-los entre si, tirando deles os resultados fundamentais graças a um fino labor de sistematização”, como ensinado por Miguel Reale[7].
Assim, a analogia é uma forma hermenêutica de integração das lacunas de uma lei pois, como já advertia Savigny[8], “o que procuramos estabelecer é sempre a unidade: a unidade negativa com a eliminação das contradições; a unidade positiva com o preenchimento das lacunas”.
E para a aderência à ideia de unidade do ordenamento jurídico, Bobbio[9] concluíra que “a completude é uma condição necessária para aqueles ordenamentos em que valem estas duas regras: 1) o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentam ao seu exame; 2) é obrigado a julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema”.
Assim, sendo a analogia uma forma de integração entre uma lei que apresenta lacunas/omissões com uma lei que apresenta soluções viáveis para ausência, a aplicação Lei nº 14.133/2021 analogicamente à Lei nº 13.303/2016 é um tema que ganha revelo à medida que a ausência de parâmetros próprios compromete a eficiência das estatais em licitar segundo as regras do seu regime jurídico e da sua regulamentação interna.
Dessa maneira, é pujante refletir até que ponto a Lei das Estatais é uma legislação lacônica ou omissa e, sobre essa questão, é conveniente trazer à baila o silêncio eloquente, do alemão beredtes Schweigen, que, segundo Maria Helena Diniz[10], é a “opção do legislador em excluir, intencionalmente, certo fato do comando legal”.
José Afonso da Silva[11] já ensinava que o silêncio eloquente se destina “a afastar a ideia de que houve omissão, a propósito, por inadvertência” e, dito de outro modo, o silêncio eloquente demonstra que a eventual lacuna não se tratou de falha ou falta na lei, mas de uma opção do legislador em não regulamentar o ponto. Trata-se de uma opção e não de uma omissão.
Há que se diferenciar, como o Supremo Tribunal Federal já o fez no julgamento dos recursos extraordinários RE135637/DF1, RE 130552/SP2, RE 130.552, a “lacuna da lei” e o “silêncio eloquente” do legislador.
No voto do Ministro Moreira Alves no RE135637/DF ficou registrado que “só se aplica a analogia, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloquente’ (beredtes schweigen), que é o silêncio que traduz a hipótese contemplada que é a única a se aplicar no preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia”.
O instituto do silêncio eloquente, por conseguinte, pressupõe o afastamento da analogia, aplicável apenas quando na lei houver lacuna.
É esse o ponto que temos que considerar: o que se integrará, por analogia da NLLC à Lei nº 13.303/2016, é uma lacuna/omissão ou um silêncio eloquente da Lei das Estatais? Se a resposta for um beredtes schweigen, a analogia não é um caminho hermenêutico viável.
E, para saber se é lacuna ou silêncio eloquente, há que se ponderar que a Lei das Estatais é inegavelmente uma legislação dispositiva e sintética que, ao ter consciência deste conteúdo genérico, quis o legislador que as lacunas e omissões da Lei nº 13.303/20216 fossem sanadas não por analogia como primeira opção, mas por regulamentação da própria empresa estatal, nos termos do art. 40[12].
O Tribunal de Contas da União, no Acórdão 1621/2021 – TCU, já usou a analogia aqui debatida em alguns de seus julgados envolvendo a Lei nº 13.303/2016, destacando que “alguns precedentes[13] recentes do TCU demonstram que, ainda que a Lei das Estatais tenha apresentado parâmetros um tanto lacônicos para a habilitação de licitantes, há uma tendência de manter entendimentos análogos aos que seriam aplicáveis no âmbito de certames da Lei 8.666/1993”, assim, a analogia foi utilizada essencialmente como forma de se sustentar o entendimento da Corte e não necessariamente como forma hermenêutica viável de completar um sistema aparentemente lacônico e ainda sem considerar a intenção do legislador em apresentar a omissão combatida.
O caso citado acima envolveu analogia com a Lei nº 8.666/1993, no entanto, recentemente, o TCU vem se utilizando da aplicação analógica da superveniente Lei nº 14.133/2021 para integrar a interpretação e aplicação da Lei nº 13.303/2016.
É o caso do Acórdão 2319/2021 – Plenário, que foi interessante ao anotar que a Corte defende a não aplicação subsidiária da Lei 8.666/1993 pelas empresas estatais, porém determinou, no caso concreto, que a estatal adotasse “as providências necessárias para prever, em seu regulamento de licitações e contratos, regra de equalização de propostas, a exemplo da contida no art. 52, § 4º, da Lei 14.133/2021, com vistas a assegurar a comparação justa das propostas de licitantes estrangeiras com àquelas de licitantes nacionais”. Registrou, ainda, que a possibilidade de “guiar-se pelo preceito do 52, § 4º, da Lei 14.133/2021, para corrigir a falha” é possível, porém destacou que a “sua adoção como referência para alteração do Regulamento de Licitações e Contratos é apenas uma opção de solução para o caso”, podendo ser adotada outras redações.
Mais recentemente, o Acórdão 362/2022 – Plenário expressamente reconheceu que a Lei 14.133/2021 não se aplica às empresas estatais. No entanto, sustentou que “em princípio, não haveria óbices que a entidade o aplicasse de forma analógica com o intuito de melhor atender o interesse público” disposições da NLLC, in casu, as previsões do art. 40, §4º da Lei nº 14.133/2021.
Assim, diferentemente do que ocorreu com o Acórdão 1621/2021, que usou a analogia com a Lei nº 8.666/1993 para sustentar o seu entendimento jurisprudencial – e não para dar unicidade ao sistema -, os Acórdãos 2319/2021 e 362/2022 aplicaram analogicamente disposições da Lei nº 14.133/2021 para sanear o que se entendeu por omissões da Lei nº 13.303/2016 ou das empresas estatais em suas regulamentações.
Retornamos ao silêncio eloquente: há omissão na Lei nº 13.303/2016 passível de ser saneada por analogia ou delegação para que a lacuna seja preenchida via regulamento interno de licitações e contratos? E mais, o regulamento está cumprindo seu papel de, verdadeiramente, regulamentar?
A analogia poderá ser utilizada para integrar institutos eventualmente ausentes das previsões da Lei nº 13.303/2016. No entanto, não poderia ser usada de maneira automática para suprir falhas das empresas estatais em sua regulamentação, já que o que é delegado pela Lei para o regulamento não é omissão, é silêncio eloquente, instituto que não é compatível com a analogia.
Desta maneira, ainda que se reconheça o valor jurídico da analogia em buscar dar unidade a um ordenamento jurídico, especialmente o brasileiro que tem hipertrofia normativa, ao nosso entender, a análise acerca das eventuais omissões na Lei ou na regulamentação, ou ainda, se é o caso de silêncio eloquente, é o que deveria ser feito preliminarmente ao uso da hermenêutica integrativa.
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Conclusão
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As empresas estatais têm poder-dever de regulamentação, para o qual a Lei instituiu um prazo de 24 meses[14] para elaboração de regulamento interno de licitações e contratos, documento que se destina a realizar a normatização interna, se prestando a prever o que a Lei não previu, disciplinando minuciosamente os institutos de acordo com as necessidades de cada entidade. Além do mister inicial de regulamentação, a Lei impõe, ainda, que o regulamento seja mantido atualizado, justamente para que possa ser diuturnamente melhorado.
Apesar de aparentemente ser o caminho mais curto, é necessário aumentar o espectro da análise antes de albergar o instituto da analogia para toda e qualquer aparente omissão na Lei das Estatais ou nos regulamentos editados pelas entidades e aplicar-lhe a Lei nº 14.133/2021.
É preciso saber se a lacuna é na Lei nº 13.303/2016 ou no dever de regulamentação da entidade que, lançando mão do silêncio eloquente da Lei, ao não regulamentar internamente, inaugura uma omissão que deveria estar normatizada e que, uma vez normatizada, afastaria a alegação de lacuna/omissão.
Destarte, a falta de regulamentação ou a regulamentação que se limita a copiar os comandos que já estão postos pela Lei nº 13.303/2016 não deveria ser combatida com a aplicação analógica da Lei nº 8.666/1993 ou da Lei nº 14.133/2021. Preliminarmente, deveria ser incentivada a normatização interna eficiente como primeira solução, a exemplo do que aconteceu no Acórdão 2711/2020 TCU Plenário[15].
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NOTAS
[1] A partir de 30.06.2016, tendo se encerrado em 30.06.2018.
[2] OCTAVIANI, Alessandro; NOHARA, Irene Patrícia. Estatais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 137.
[3] JUSTEN NETO, Marçal. Os regulamentos internos de licitações e contratos das empresas estatais. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n. 119, jan. 2017. Disponível em: http://www.justen.com.br/pdfs/IE119/IE%20119%20-%20MJN%20-%20Prazo%20Regulamento.pdf. Acesso em 16 de março de 2022.
[4] Acórdão 2764/2020 Plenário.
[5] Acórdão 2059/2020 e Acórdão 2311/2020, ambos do Plenário.
[6] Decreto-lei nº 4657/1984, art. 4º.
[7] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 414.
[8] SAVIGNY. F. C. Sistema Del diritto romano attuale. Trad. It. Torino: UTET, 1886. v. 1, seção 4.
[9] BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 262.
[10] DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. vol. Q-Z. pág. 392.
[11] SILVA, JOSÉ AFONSO. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10 ª ed. São Paulo. Malheiros Editores. 1995, p. 62.
[12] Art. 40. As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão publicar e manter atualizado regulamento interno de licitações e contratos, compatível com o disposto nesta Lei, especialmente quanto a:
I – glossário de expressões técnicas;
II – cadastro de fornecedores;
III – minutas-padrão de editais e contratos;
IV – procedimentos de licitação e contratação direta;
V – tramitação de recursos;
VI – formalização de contratos;
VII – gestão e fiscalização de contratos;
VIII – aplicação de penalidades;
IX – recebimento do objeto do contrato.
[13] Os precedentes citados foram o (Acórdão 1889/2019-TCU-Plenário) e o Acórdão 4028/2020-TCU-Plenário).
[14] Prazo esse que se esgotou em 30.06.2018.
[15] 9.1.1. ao Ministério da Infraestrutura e à Agência Nacional de Transportes Aquaviários, no limite de suas competências, que avaliem a conveniência e oportunidade de adotar procedimentos administrativos, como a edição de diretrizes ou normativos infralegais visando: […] 9.1.2.4. fomentar a adoção de regulamento próprio de licitações e contratos pelas autoridades portuárias, traçando as diretrizes adequadas às contratações de obras e serviços necessários ao bom funcionamento dos portos organizados, bem como coordenar a implantação pelas companhias docas sob sua supervisão, levando em consideração as peculiaridades de cada uma, de acordo com a previsão contida no art. 40 da Lei 13.303/2016 e art. 63 da Lei 12.815/2013 (seção VIII do voto);
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Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. vol. Q-Z.
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Referência bibliográfica deste texto:
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