OS REFLEXOS DA MP 936/20 NOS CONTRATOS TERCEIRIZADOS SUSPENSOS

   
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Contadora formada pela UNISINOS e advogada, formada pela ULBRA, pós-graduada em Auditoria e Perícia Contábil sócia da Paim & Furquim Contabilidade, em Gravataí/RS e assessora técnica e articulista para as áreas de finanças e Licitações do INGEP – Instituto Nacional de Gestão Pública , com sede em Porto Alegre/RS. Integrante da comissão de terceirização do IBDA – Instituto Brasileiro de Direito Administrativo. Palestrante, congressista e facilitadora de treinamentos abertos e fechados relacionados à gestão de Contratos Públicos, com enfoque específico para a elaboração e análise de planilhas de custos e formação do preço de prestação de serviços e fiscalização de contratos.

Se as empresas a partir de abril de 2020 podem suspender ou reduzir contratos de trabalho, deixando de arcar integralmente com sua folha de pagamento, contando com a “ajuda” da União, se justifica o pagamento da Administração Pública pelos serviços suspensos?

Desde que foi publicado a Medida Provisória nº 936 em 01º de abril de 2020, permitindo a suspensão dos contratos de trabalho por até 90 dias ou a redução proporcional da jornada de trabalho e salários, muito tenho pensado em seus efeitos nos contratos de terceirização.  Em especial naqueles em que houve a suspensão parcial ou total da execução dos contratos.

Sabemos que em decorrência de uma série de medidas de combate ao coronavírus no Brasil, em especial, a publicada em 07 de fevereiro de 2020 no D.O.U, a Lei 13.979/2020,  que estabeleceu medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, muitas Instituições Públicas tiveram rotinas de trabalho bastante alteradas, tendo que ajustar-se rapidamente às recomendações ora estabelecidas.  Consequentemente em razão do esvaziamento dos espaços públicos, que aconteceu por volta da metade do mês de março de 2020, muitos contratos de terceirização firmados por essas Instituições também foram afetados.

Diante da situação apresentada, sem precedentes de igual comparação, os gestores públicos  se viram obrigados a realizar uma análise da essencialidade dos serviços contratados, expediente este recomendado[1] inclusive pela Secretaria de Gestão do Ministério da Economia (SEGES), enquanto órgão central do Governo Federal,  de tal forma que a própria Instituição também zele pela segurança e saúde de seus terceirizados, permitindo a  atuação presencial de trabalhadores  terceirizados  somente para  atender atividades consideradas realmente essenciais pelo órgão ou entidade, e ainda em patamar mínimo para a manutenção dessas atividades, com o objetivo de evitar aglomerações e exposição excessiva.

Como efeito, cada Instituição precisou realizar uma análise da pertinência  da continuidade da execução contratual, tal como havia sido planejada inicialmente, quando nada do que hoje estamos vivendo seria possível sequer imaginar e diante da singularidade de cada  situação apresentada, reduzir total ou parcialmente a execução dos  serviços contratados ou  ainda, suspender temporariamente os contratos firmados.

Temos visto que nesse momento há Instituições que deixaram de realizar atendimentos presenciais ao público atendido, passando os servidores a trabalhar 100% em regime de teletrabalho, outras, mantiveram atendimento mínimo presencial, apenas para atendimento de situações emergenciais. Assim como há Instituições, como aquelas relacionadas diretamente à área da saúde, em que a rotina praticamente não foi alterada. 

Nesse momento, tenho verificado pelo feedback que recebo de muitos servidores públicos das três esferas de governo, que diante do esvaziamento dos espaços públicos e, ainda, para atendimento as determinações da OMS, grande maioria optou por reduzir parcialmente a execução dos serviços terceirizados durante esse período de pandemia. Nessa hipótese, ainda que as atividades tenham sido total ou parcialmente suspensas, o contratado permanece com toda a mão de obra à disposição do contratante para realizar a prestação do serviço, podendo a  qualquer momento a prestação do serviço ser retomada, assim que o cenário se volte favorável e as condições relativas as questões sanitárias sejam retomadas.

Relativamente quanto ao mês de março de 2020, quando teve início toda essa situação calamitosa, grande parte das Instituições que suspenderam parte dos contratos terceirizados, pagaram integralmente pelos serviços contratados, apenas glosando itens de custos não utilizados pelos empregados, tal como o vale transporte.

Tal procedimento ainda que sem previsão legal expressa para que se aja em perfeita sintonia com o principio da legalidade, encontrou guarida em preceitos  constitucionais, como o direito à vida, à saúde e à manutenção de empregos[2]. Mas também pautou-se no  fato de que esta seria uma alternativa para que essas empresas consigam suportar esse momento de crise, bem como possam manter os contratos de trabalho intactos sem prejuízo aos empregados contratados, que sem sombra de dúvidas representam, a parte mais frágil do trinômio estabelecido no contrato administrativo.[3] Até porque, relativamente ao mês de março, as alternativas trabalhistas  que os empregadores tinham  para atendimento às orientações médico sanitárias  trazidas na Lei 13.979/20  que culminaram no afastamento temporário ao trabalho de milhares de terceirizados, eram as previstas na Medida Provisória nº  927 publicada em 22 de março de 2020, qual sejam: teletrabalho;  possibilidade de férias coletivas; antecipação de férias individuais; banco de horas e aproveitamento e antecipação de feriados.

Independente da solução que tenha sido utilizada pelas empresas contratadas, esta gerou para as empresas contratadas o custo com a remuneração dos empregados, ativos ou afastados em razão do atendimento a Lei nº13.979/20.

Ocorre que a partir de 01 de abril de 2020 com a publicação da Medida Provisória 936, este cenário muda. Isso porque, foi acrescido às soluções jurídicas trabalhistas já trazidas pela MP 927, às alternativas do acordo individual para redução proporcional de jornada de trabalho e de salários e o acordo individual para a suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo de até 90 dias. Em ambos os casos, a União pagará parte (como no caso da redução) ou totalmente (como no caso da suspensão) a remuneração do empregado que tiver aceito o acordo proposto, mediante o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda que será custeado com recursos oriundos do Seguro Desemprego.

Como conseqüência, o empregador que tiver realizado acordo individual com seus empregados, nos termos da MP 936, deixa de arcar sozinho com o custo de sua folha de pagamento e passa a contar com a ajuda do governo, durante o prazo estabelecido no acordo.

Ora, diante dessa possibilidade, perfeitamente possível que empresas de terceirização de serviços contratadas pela Administração Pública, que tiveram a execução dos serviços prestados parcialmente suspensos ou totalmente suspensos, optem por uma das alternativas da MP 936 para com os empregados afastados do trabalho.  Assim, caso a Administração tenha permitido um revezamento de empregados terceirizados para atender minimamente às atividades  essenciais, perfeitamente compatível a redução de jornada de trabalho e salários, desde que a necessidade de revezamento se compatibilize com os percentuais de redução trazidos na MP 936 (25%, 50% ou 75% de redução). Bem como, se a empresa possuir empregados terceirizados que se encontram no grupo risco (portadores de doenças crônicas, histórico de contato com suspeito ou confirmado para COVID-19 nos últimos 14 dias, idade acima de 60 anos etc.) e precise afastá-los temporariamente  de suas  atividades, pode perfeitamente lançar mão da suspensão temporária  do contrato de trabalho.

Importante deixar registrado que a decisão pela forma de condução para com os empregados, é exclusivamente das empresas contratadas, cabendo a Administração apenas cobrar das empresas providências quanto a adoção das medidas médico sanitárias trazidas pelas autoridades competentes na  área da saúde e  adequar o modo de execução contratual  e o IMR-Instrumento de Medição de Resultados, caso estes se mostrem destoantes da realidade atual da Contratante. Exceto, se forem ajustados compromissos sociais e trabalhistas como condição contratual.

De qualquer forma, caso a contratada lance mão da MP 936/20 para socorrê-la nesse momento de suspensão de atividades terceirizadas, voltamos  à discussão sobre a contrapartida do pagamento integral pelos serviços suspensos. E a pergunta que me faço é: Se as empresas a partir de abril de 2020 podem suspender ou reduzir contratos de trabalho, deixando de arcar integralmente com sua folha de pagamento, contando com a “ajuda” da União, se justifica o pagamento da Administração Pública pelos serviços suspensos?

A resposta comporta várias reflexões, inclusive com reflexos em outras searas. Sabemos que o regime jurídico dos contratos administrativos, não permite que a Administração Pública realize pagamentos acima dos custos necessários e realmente incorridos, conforme linha preconizada no Acórdão do TCU nº 117/2014-Plenário. Também sabemos que, comprovadamente, havendo pagamentos acima dos custos incorridos pela contratada, poderá ser materializado como enriquecimento ilícito pela contratada, cujos contornos jurídicos às partes envolvidas não me cumpre aqui tratar.

Por outro lado, em período como o atual, de calamidade pública decorrente do combate à pandemia do COVID-19, traz-se a baila um interesse público maior, primário e que se sobrepõe a interesse público secundário e interesses privados. Nosso direito Administrativo, por incrível que pareça, não está preparado para enfrentar questões tão profundas e impactantes como essas.

Há autores como Ronny Charles[4] e Joel Niehbur,[5] que tem se manifestado nas redes sociais e em artigos publicados, pela busca de uma solução dialogada e consensual para os problemas gerados pelo vírus e suportados de diferentes formas pelas partes relativamente aos contratos administrativos.  Não é de hoje que muitos doutrinadores vêm sugerindo a utilização de instrumentos consensuais como forma de equalizar interesses entre Estado, sociedade, trabalhadores e empresas. Esse caminho, pautado pelo bom senso, razoabilidade, flexibilidade diante de situações concretass que exijam soluções pontuais, amparado  inclusive pela nova LINDB- Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em especial o artigo 26[6],  já vinham sendo percorridos em situações de normalidade. Assim, muito mais relevante e importante se faz agora em momentos de crise.

Desta feita, em que pese, pela letra fria das normas aplicadas aos contratos administrativos, que determina tecnicamente que a suspensão parcial dos serviços deva como conseqüência  acarretar no  não pagamento pelos serviços não prestados, e por lógica , não  cabendo ao contratante dos serviços ingerir sobre o futuro dos terceirizados, ou seja, se tal fato vai acarretar em demissão ou realocação dos trabalhadores terceirizados, o momento atual comporta perfeitamente uma solução mais flexível, pontual e pautada pela realidade das partes, sempre devidamente motivada e fundamentada.

Compreendo perfeitamente que os contratos administrativos não são mecanismos de transferência de renda, nem se destinam a realizar políticas públicas. Todavia, diante da situação atual, não se pode fechar os olhos para a realidade além de nossas janelas. No caso da calamidade pública declarada  em razão de pandemia, sem precedentes e ainda dotado de incertezas e imprevisões, é dever de todos e principalmente do Estado zelar pela saúde e bem estar, adotando medidas excepcionais para garantia da saúde pública, e paralelamente, buscando no âmbito do Direito Administrativo, normas jurídicas que garantam a supremacia do interesse público primário sobre o secundário, na linha célere do “Direito Administrativo vivo e passional”, imortalizada nos ensinamentos preconizados pelo  saudoso Professor Paulo Neves de Carvalho por ele realizadas em Seminários e Congressos.

E é com as palavras que encantam, tão oportunas no momento atual, que termino essas breves linhas, como forma de homenagem ao grande mestre e de reflexão para todos aqueles que precisam lidar com as duras regras dos contratos administrativos:

“O administrativista, por vocação, por definição, é um agente de mudança! E ele tem de estar atento a esta realidade que se instala no bojo da vida para que o Direito por que ele peleja sirva efetivamente à vida. E, então, os sentimentos de liberdade, de justiça e de fraternidade deixarão de ser uma mera opção e  estaremos comungando  do  ideário dos  artigos  1º e  3º da  Constituição. Estaremos  identificando  isto  que  a  inteligência  ditou  em  determinado  momento.  Nós estaremos  identificando este  plano com o plano da vida, com o  plano  da comunhão social. Meus amigos, estamos falando de Direito Público. E o Direito Público se nutre muito, muito mesmo, de sentimento e de emoção (…)”[7]

 

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Notas

[1]Consulta em https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1270-recomendacoes-covid-19-servicos-terceirizados

[2]A exemplo, essa foi a linha utilizada no  PARECER n. 00310/2020/CONJUR-MEC/CGU/AGU.

[3]Relação estabelecida entre tomador de serviços/empresa contratada e empregado terceirizado.

[4]  Os reflexos do coronavírus nos contratos terceirizados . Disponível em http://flavianapaim.com.br/index.php/2020/04/06/os-reflexos-da-pandemia-do-coronavirus-nos-contratos-terceirizados/

[5] NIEBHUR, Joel. O que fazer com os contratos administrativos em tempo de coronavírus. Disponível em https://www.zenite.blog.br/o-que-fazer-com-os-contratos-administrativos-em-tempos-de-coronavirus/.

[6] “Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial”.

[7] ARAUJO, Ana et al, O Estado em Rede na lógica do “Direito Administrativo” vivo, A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 14, p. 147, 2014.

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