Gestão pública, a nova lei de licitações e os lugares mais quentes do inferno

Renato Fenili.

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Reconheço que esse título possa parecer mais sensacionalista do que eu gostaria. Ainda assim, caro(a) leitor(a), tentarei me justificar, e reunir elementos que o torne, ao menos, coerente com a conjuntura que vivemos hoje, na seara pública, às vésperas da aprovação de uma nova lei de licitações.

Hoje é dia 05 de junho de 2019. Mais precisamente, 04:20 da manhã. Talvez venha a ser um dia histórico para as compras nacionais, já que existe a real possibilidade de ser votado em plenário da Câmara dos Deputados o PL nº 1.292/95 – o novo regramento federal de contratações públicas –, em sessão extraordinária convocada para daqui a algumas horas. Ainda que o projeto tenha que retornar ao Senado, obedecendo ao rito legislativo enquanto casa iniciadora, é um enorme passo rumo à sua sanção derradeira.

Nos últimos meses, tive a satisfação de atuar, em nome da Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, como um dos pontos focais de diálogo com o Congresso e com a Casa Civil, para tratar do aprimoramento do PL. A mim, foi um aprendizado, acima de tudo. Minha primeira conclusão, óbvia em visão en passant, resume-se a essa: erigir um diploma legal que estabeleça as regras sobre como o Estado deve despender valores que chegam à soma de cerca de 10% do PIB não é tarefa corriqueira. Está sujeita a uma miríade de vetores de interesses, não raramente dissonantes.

Pequenas e grandes empresas. Controladores e controlados. Empreiteiras e seguradoras. Visões municipalistas que visam a privilegiar o fornecimento local e aquelas que defendem a ampla competitividade de mercado. Discursos ideológicos que almejam a maior flexibilidade da gestão versus os que veem a cultura nacional como entrópica per si, e carente, pois, de ser refreada por normas, digamos, weberianas. Posições contraditórias que atuam diuturnamente, em uma verdadeira arena, na qual inexiste vácuo de poder. Achar um ponto de equilíbrio que satisfaça a todos é, concluo em apertada síntese, quase um paradoxo em sua gênese.

Em breve resgate histórico, rememoro que o PL em questão quase fora votado no ano passado. As questões mais polêmicas haviam sido superadas junto ao corpo de deputados nos idos de 2018. Mas perdeu-se o timing de votação, um aspecto realmente subjetivo da dinâmica parlamentar brasileira. E, com a expressiva renovação do Congresso, discussões pretéritas já assentadas e lobbies equalizados ressurgiram com pujança a partir do início deste ano, sendo materializados, ao final, em 117 emendas em Plenário ao relatório anteriormente aprovado.

Poderia, doravante neste texto, passar a um exame técnico minudente das inovações da nova lei, algo que inevitavelmente farei em brevíssimo futuro. Mas não agora. Por ora, adotarei abordagem distinta, voltada a discernir macro impactos da nova lei de licitações em sede de carências conjunturais do Brasil.

Em primeiro plano, o novo diploma – já com as modificações da Subemenda Substitutiva Global – vem a prover distintas ferramentas para cuidar de ferida crônica ao País, e bem exposta no Acórdão 1.079/19 – Plenário TCU: as obras paralisadas. O rol, ainda que não exaustivo, é vasto: mitigação de aditivos mediante contratações integradas e semi-integradas; delineamento do que deve conter um projeto básico e um anteprojeto; previsão de contratos de eficiência; instituição de sistema informatizado de acompanhamento de obras com recursos de imagem e vídeo; BIM; diretrizes para orçamentação; previsão de implantação de programa de integridade (no caso de obras de grande vulto); índice de reajuste com data-base vinculada à data de apresentação da proposta; critérios para a avaliação de inexequibilidade do valor ofertado; execução de cada etapa obrigatoriamente precedida da conclusão e da aprovação, pela autoridade competente, dos trabalhos relativos às etapas anteriores da obra; medição mensal, sempre que compatível.

Como se já bastante não fosse, temos o uso do SRP para obras padronizadas, a possibilidade de se exigirem garantias diferenciadas em função do valor do objeto, o step-in right, a expedição da ordem de serviço para execução de cada etapa obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada; a instituição de ordem cronológica específica para obras, no que concerne ao pagamento das faturas e a possibilidade de pré-qualificação de licitantes, no caso de licitações relacionadas a programas de obras. Por mais críticos que sejamos, difícil sustentar a posição de que não houve um aperfeiçoamento da matéria, se cotejada com a Lei nº 8.666/93.

Não menos importante é o fato que a vindoura lei possibilita que se contrate, com menos amarras, inovação. A assimetria de informação entre o mercado e a Administração Pública, no que concerne às possibilidades de desenho de soluções, foi contemplada no PL em discussão. Nesses lindes, trazem-se à baila o procedimento de manifestação de interesse (PMI) – que pode inclusive ser restrito a startups –  e o diálogo competitivo, sendo este último uma nova modalidade de licitação que, na última versão do texto, passou a gozar da supressão da exigência de valor mínimo para a sua adoção (antes, era apenas para valores acima de R$ 100 milhões).

Ao cidadão, também importa os artefatos de governança em aquisições públicas que passaram a ser prescritos no projeto. Em consonância com o estado da arte na temática, elementos tais como gestão por competências, planos anuais de compras, gestão de riscos, estudos técnicos preliminares, compliance e integridade, controle em três linhas de defesa, além da obrigatoriedade  do alinhamento entre as contratações e o planejamento estratégico do órgão, restam insculpidos no novo regramento. Nesse quesito, assevero: ainda que uma lei não resolva tudo, seu papel é (também) o de indutor cultural. Aos servidores que pelejam por melhores compras públicas, o reforço legal da governança é o melhor dos patrocínios.

Ainda escreverei sobre aspectos tais como ganho de transparência, os institutos de conciliação e mediação, a declaração de nulidade de um contrato sopesada com seus impactos sociais a redução do prazo do exceptio non adimpleti contractus para dois meses e por aí vai.

Todavia, hoje opto por fugir desses meandros.

É creditado a John F. Kennedy, na década de 1950, uma série de discursos nos quais o então senador empregava invariavelmente a seguinte expressão: “Os lugares mais quentes do inferno são reservados àqueles que, em uma época de grande crise moral, mantêm sua neutralidade”. O futuro presidente dos Estados Unidos valia-se, à época, da obra Inferno, de Dante Alighieri, o primeiro dos três livros que compõem sua obra-prima – A Divina Comédia. Em que pese a imprecisão literária de Kennedy (na obra de Dante, quem mantém a neutralidade é digno de desprezo tal que são impedidos de adentrar tanto o céu quanto o inferno), fato é que a colocação mantém-se com surpreendente acerto nos dias atuais.

Fugindo, pois, da inercial neutralidade que é mais costumeira do que deveria ser, e despido de vieses alheios ao múnus público, digo que o PL, nos moldes da Subemenda Substitutiva Global, é bom para o Brasil. É bom para o cidadão que espera que as políticas públicas estatais sejam entregues com efetividade. É bom para o comprador público que se aflige com desmandos e com as arbitrariedades. É bom para um mercado ávido por transparência, por informações que ensejam maior relações comerciais com o Estado. Não é uma lei perfeita, se é que existe uma que o seja. Por isso, será aperfeiçoada, inevitavelmente, nos anos que se seguirão. Mas, caro(a) leitor(a), é um passo adiante.

Renato Fenili

Secretário Adjunto de Gestão – Ministério da Economia.

Permitida a reprodução desde que mencionados a fonte e o link da postagem original (http://olicitante.link/impactospl).

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